Acade-mail Ed. 050

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06 de outubro de 2025                                                               Edição 050

Na Escócia do século XVIII, Claire — personagem da série Outlander — é arrastada ao tribunal acusada de bruxaria. 

Os “jurados”? Movidos por superstição. As “provas”? Nenhuma. A sentença? Praticamente definida antes do julgamento começar.


Era o século XVIII, mas poderia ser qualquer tempo ou lugar onde o devido processo legal não existe.

Infelizmente, muitos brasileiros ainda não compreendem que o que nos protege de julgamentos assim — emocionais, injustos e irreversíveis — é a existência de uma Constituição que garante direitos. 

É aí que a discussão inflama-se. 

Diante de crimes que ganham a opinião pública, é comum vermos manifestações que exigem prisões a qualquer custo, desqualificam o trabalho da advocacia criminal e atacam qualquer tentativa de assegurar os direitos de defesa.

Muitas vezes, o próprio advogado é confundido com o crime — como se defender um acusado fosse o mesmo que concordar com os atos praticados.

Mas não é.

O criminalista não defende o crime. Defende os direitos fundamentados na Constituição.

Mesmo quando o cliente não é inocente, ele tem direitos que não podem ser ignorados. E são esses direitos — à ampla defesa, ao contraditório, ao julgamento justo e imparcial — que mantêm a democracia viva.

É por isso no mês em que comemoramos os 37 anos da Constituição Federal de 1988, é um bom dia para lembrar:

O criminalista não defende o crime, nem o criminoso. Ele defende o que nos impede de voltar à Idade Média.

Porque se abrirmos mão dos direitos fundamentais, amanhã qualquer um pode ser acusado, processado e julgado da forma como melhor interessar ao Estado. 


E quando isso acontecer, todos vão clamar para que os direitos sejam assegurados por um advogado preparado e corajoso o suficiente para defender o seu direito de se defender.

A Constituição é o escudo entre o cidadão e a fogueira.

E o advogado criminalista é quem segura esse escudo — mesmo quando todos gritam pelo fogo.

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1. Tráfico privilegiado não é crime hediondo – Agora é Súmula Vinculante

A nova Súmula Vinculante 63 torna obrigatória, para todo o Judiciário e a Administração Pública, a aplicação do entendimento já pacificado pelo Supremo Tribunal Federal (e STJ) quanto à natureza não hedionda do tráfico privilegiado. 

Como se sabe, a Lei 11.343/2006, ao tipificar o crime de tráfico, introduziu uma figura atenuada ou minorada, conhecida como tráfico privilegiado. 

O art. 33, par. 4º, prevê uma causa de diminuição de pena para o agente que, for primário, com bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas e não integrar organização criminosa. 

A existência desta causa especial de diminuição de pena suscitou uma profunda controvérsia jurídica: 

Se o legislador, ao criar uma forma penalmente menos reprovável do tráfico, pretendia ou não afastar o tratamento severo inerente à hediondez, que seria incompatível com as condições subjetivas benéficas do réu.

Até 2016, o cenário jurisprudencial era marcado pela instabilidade, sendo que o STJ evidenciou sua orientação de que o tráfico privilegiado mantinha sua natureza hedionda, cristalizada na Súm. 512.

A adoção de entendimentos distintos nas cortes superiores gerava insegurança jurídica e disparidade na aplicação da lei, cumprindo ao STF uniformizar a interpretação constitucional do art. 5º, XLIII, CF/88, em face da norma infraconstitucional mais benigna (Art. 33, § 4º, Lei 11.343/2006).

O marco definitivo na jurisprudência do STF, que desclassificou o tráfico privilegiado da categoria de crime hediondo, foi o julgamento do HC 118.533/MS.  

O writ foi julgado pelo Plenário em 23 de Junho de 2016. A relatora foi a  Ministra Cármen Lúcia. 

A ordem foi concedida por maioria de votos, com o objetivo de afastar os rigores da Lei de Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/1990).  

Este precedente pavimentou o caminho para a uniformização definitiva. 

Na sessão virtual do Plenário do STF encerrada em 26/09/2025, o entendimento foi transformado em Súmula Vinculante, com a seguinte redação:

SV 63

O tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006) não configura crime hediondo, afastando-se a aplicação dos parâmetros mais rigorosos de progressão de regime e de livramento condicional.

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Em novembro de 2021, o STF reconheceu a repercussão geral do seguinte questionamento:

À luz do art. 5º, LIV e LXIII, da CF, existe obrigatoriedade de advertir o preso quanto ao seu direito ao silêncio desde a abordagem policial – quando frequentemente ocorre o denominado “interrogatório informal” – sob pena de ilicitude da prova, considerando-se os princípios da não auto-incriminação (nemo tenetur se detegere) e do devido processo legal?

O RE 1177984, de relatoria do Ministro Edson Fachin, que deu origem ao tema 1185, estava em pauta para julgamento no dia 02 de outubro, mas o julgamento foi adiado. 

A proximidade de um julgamento definitivo confere ao tema uma urgência prática, transformando a discussão dogmática em um potencial princípio legal vinculante de aplicação imediata. 

O “Aviso de Miranda” é uma doutrina originária da Suprema Corte dos Estados Unidos, estabelecida no caso Miranda v. Arizona (1966), que exige a informação expressa dos direitos ao silêncio e à assistência jurídica antes do “interrogatório custodial” (questionamento policial após a privação da liberdade).

No Brasil, o CPP já impõe a obrigatoriedade da advertência nos interrogatórios formais (Art. 6º, V, e Art. 186). 

A discussão do Tema 1185 não se concentra na existência do direito, que é pacífico, mas sim na sua extensão temporal: se o dever de advertir se inicia na fase pré-custodial ou imediata à prisão, ou seja, no momento da abordagem policial

O STF busca, portanto, definir se o Aviso de Miranda deve ser aplicado de forma integral e imediata no território nacional, garantindo que a ignorância dos direitos não resulte em uma confissão involuntária.

O Tema 1185, ao discutir a obrigatoriedade da advertência sob pena de ilicitude da prova, eleva a omissão policial de uma mera irregularidade processual (que geraria nulidade) a uma violação de norma constitucional que afeta a validade da prova em sua origem. 

A questão é se a ausência de cientificação é um vício insanável, que torna o ato de inquirição e a prova dele resultante inconstitucionais, exigindo a exclusão sumária.  

O STJ adota uma postura mais restritiva em relação à aplicação do “Aviso de Miranda” na fase pré-custodial.

Para a Corte Superior, a legislação processual penal não exige que os policiais, no momento da abordagem, cientifiquem o abordado quanto ao seu direito de permanecer em silêncio. 

O direito é assegurado somente nos interrogatórios policiais e judiciais formais.  

Ademais, julgados do STJ indicam que a falta de informação do direito ao silêncio na fase do inquérito policial seria uma nulidade relativa, devendo a parte demonstrar o efetivo “prejuízo”. 

Esse posicionamento do STJ, ao exigir a prova do prejuízo, cria uma lacuna procedimental. 

O STF, ao pautar o Tema 1185, tem a oportunidade de fechar essa lacuna

Estamos de olho 👀

Acesse o acórdão de repercussão geral aqui

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Publicado no dia 24/09/2025, o acórd ão do julgamento de mérito da repercussão geral no tema 977, o qual  fixou as seguintes teses:

“1. A mera apreensão de aparelho celular, nos termos do art. 6º do CPP ou em flagrante delito, não está sujeita à reserva de jurisdição. Contudo, o acesso aos dados nele contidos deve observar as seguintes condicionantes: 

1.1 Nas hipóteses de encontro fortuito de aparelho celular, o acesso aos respectivos dados para o fim exclusivo de se esclarecer a autoria do fato supostamente criminoso, ou quem seja o proprietário do aparelho, não depende de consentimento ou de prévia decisão judicial, desde que justificada posteriormente a adoção da medida. 

1.2 No caso de aparelho celular apreendido por ocasião de prisão em flagrante, o acesso aos respectivos dados está condicionado ao consentimento expresso e livre do titular dos dados ou de prévia decisão judicial (cf. art. 7º, inciso III, e art. 10, § 2º, da Lei nº 12.965/14) que justifique, com base em elementos concretos, a proporcionalidade da medida e delimite sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade, à proteção dos dados pessoais e à autodeterminação informacional, inclusive nos meios digitais (art. 5º, incisos X e LXXIX, da CRFB/88). 

Nesses casos, a celeridade se impõe, devendo a autoridade policial atuar com a maior rapidez e eficiência possível e o Poder Judiciário conferir tramitação e apreciação prioritárias aos pedidos dessa natureza, inclusive em regime de plantão. 

2. A autoridade policial poderá adotar as providências necessárias para a preservação dos dados e metadados contidos no aparelho celular apreendido antes da autorização judicial, justificando posteriormente a adoção da medida.”

Clique aqui para acessar a íntegra do acórdão.

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