A 3ª Seção do STJ apreciou a seguinte questão em sede de recurso repetitivo:
Para a realização de ANPP – acordo de não persecução penal – pelo Ministério Público, é necessário que o acusado tenha confessado o crime durante o inquérito policial?
Inicialmente, necessário destacar que as duas Turmas de direito penal (5a e 6a Turma) consolidaram entendimento pela desnecessidade de confissão extrajudicial como condição para a propositura de ANPP pelo órgão ministerial.
Com efeito, quando da definição do tema 1.098 pela 3a Seção, nada se falou sobre a necessidade da confissão prévia.
Recordemos que o tema 1.098, quando definiu as diretrizes para aplicação do pacote anti crime quanto à possibilidade da elaboração de ANPP para processos iniciados anteriormente à vigência da lei, afastou a exigência de confissão do réu em sede inquisitorial, nos seguintes termos:
“2 – Diante da natureza híbrida da norma, a ela deve se aplicar o princípio da retroatividade da norma penal benéfica (art. 5º, XL, da CF), pelo que é cabível a celebração de ANPP em casos de processos em andamento quando da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado da condenação.”
Ademais, importante esclarecer a premissa fixada na primeira tese do Tema 1098: “o ANPP constitui um negócio jurídico processual” e representa a “possibilidade de composição entre as partes com o fim de evitar a instauração da ação penal”.
Desta forma, evidenciado está o aspecto negocial do instituto do ANPP, o qual deve ser levado em conta para interpretar a ratio da inovação legislativa.
Tendo em vista suas características negociais, exigir da parte mais vulnerável da relação que cumpra previamente uma das obrigações a serem assumidas, sem sequer saber se terá ou não a oportunidade de negociar, seria negar o caráter negocial do instituto.
Recordemos, outrossim, que o STJ posicionou-se no sentido de que “o ANPP não constitui direito subjetivo do investigado, podendo ser proposto pelo Ministério Público conforme as peculiaridades do caso concreto e quando considerado necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção da infração penal” (AgRg no REsp n. 1.912.425/PR).
Portanto, qualquer imposição prévia à iniciação do acordo configuraria mera conjectura, posto que não há direito subjetivo à celebração do acordo.
Por isso que exigir uma prévia renúncia ao direito ao silêncio e à não autoincriminação, independente da contrapartida, representaria imposição contrária ao próprio direito fundamental da presunção da inocência.
Vamos mais longe: exigir a confissão anterior acabaria por incentivá-la em ambiente inquisitorial, à margem da plenitude das garantias do devido processo legal (e, em grande parte, sem a assistência de uma advogado criminalista), o que seria contrário aos esforços do STJ pela racionalização do uso da confissão extrajudicial no Processo Penal (vide teses estabelecidos no AREsp n. 2.123.334/MG, rel. Ministro Ribeiro Dantas)
Citamos ainda a garantia convencional de não ser obrigado a depor contra si mesmo ou declarar-se culpado (art. 8.2, “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos).
Na medida em que os direitos humanos possuem tendência expansiva e reclamam máxima efetividade, as normas internacionais que os asseguram representam verdadeiros cernes de interpretação para a legislação ordinária.
Neste ponto, necessário se faz compatibilizar a possibilidade legal de celebrar o ANPP com a força normativa implementada pelo art. 8.2, “g”, da CADH. Mais um motivo pelo qual não se pode, por força do que estabelece o Pacto de San José, obrigar a parte a depor contra si mesma ou declarar-se culpada.
Exigir que esta opção seja feita “no escuro”, antes de saber se terá ou não uma proposta de acordo, reflete evidente agressão aos direitos fundamentais ora identificados.
A celebração do ANPP, com a consciência dos ganhos e perdas de cada via (processual ou negocial), deve ser informada, implicando na ciência do conteúdo da proposta formulada pelo MP, bem como dos elementos que lastreiam a pretensão acusatória.
Ademais, temos a necessidade da defesa técnica exercida pelo advogado particular ou defensor público (sobre esse ponto, já se decidiu que a “ausência de orientação e presença da Defesa técnica [contamina] a negativa de acordo” – HC n. 838.005/MS, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo).
Sob outro enfoque, igualmente não satisfaz os ditames da CADH a interpretação de que a utilização, na fase inquisitorial, desses direitos pela pessoa (não depor contra si mesma nem declarar-se culpada) seria impeditivo para acessar um instrumento negocial capaz de lhe favorecer.
Ora! A própria Convenção estabelece em seu artigo 29, “b”, que a interpretação de seus dispositivos não pode ocorrer de modo a “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados-Partes”.
Dessa forma, em qualquer linha de pensamento, exigir a confissão prévia durante a fase investigativa é postura contrária à garantia do art. 8.2, “g”, da CADH; e interpretar que o uso dessa garantia na fase inquisitorial impede o acesso ao instrumento processual negocial promove evidente agressão ao art. 29, “b”, da Convenção.
Daí porque, diante do silêncio do art. 28-A do CPP quanto ao momento em que deve se dar a confissão, não é possível interpretá-lo de modo a exigir a confissão inquisitorial, e ainda por cima prévia à eventual proposta de ANPP.
Dessa forma, é possível que a confissão seja levada a efeito perante o próprio órgão ministerial, após a formulação da proposta de acordo, sua avaliação (assistida por defesa técnica), eventual negociação e aceitação dos termos do ANPP.